No mês de aniversário de dez anos de criação da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (ABEPS), a série de entrevistas “Somos ABEPS” conta a história do psiquiatra, professor e um dos fundadores da ABEPS, Neury Botega (@neurybotega). Ao compartilhar trajetórias, experiências profissionais e projetos desenvolvidos em diversas regiões do país, a ABEPS busca fortalecer vínculos internos e reconhecer o papel de cada associado na promoção do cuidado, da pesquisa e da prevenção do suicídio.
Nascido em Campinas (SP), Neury Botega, de 67 anos, é neto de imigrantes italianos e cresceu em uma família que valoriza o trabalho e a educação. Era o caçula da família, tendo duas irmãs mais velhas. O pai conciliava dois empregos — era ferroviário e alfaiate — enquanto a mãe, dona de casa, também contribuía com as costuras. O sonho de ser médico apareceu ainda criança. “Quando eu expressei isso, todos ficaram muito contentes e passaram a me olhar diferente. O meu desejo passou a ser também o desejo da família”, conta.
Uma das grandes referências brasileiras na área de prevenção do suicídio, Neury conta como foram os primeiros movimentos para criação da ABEPS e revela que está rascunhando capítulos de um novo livro. Confira a entrevista!
Quando surgiu a ideia de cursar Medicina?
Neury – Eu era muito criança. Brincando no quintal de casa, eu fazia “operações” em tomate, em batata, em chuchu. Para mim, naquela época, a ideia de médico era o médico cirurgião. Estudei em um colégio público muito bom, com excelentes laboratórios e aulas práticas. O meu encanto era o laboratório de biologia. No final do curso, eu tive um pouco de dúvida, porque também gostava de humanas. Mas, ao fazer Psiquiatria, acabei atendendo plenamente esse meu desejo de conhecer mais sobre o humano – não só sobre um olhar intimista, mas também sobre um olhar social, antropológico, cultural, religioso.
Qual a influência do seu pai nessa trajetória?
Um dia, meu pai foi caminhando comigo até um bairro distante de onde a gente morava – era um bairro em ascensão. Ele me mostrou um terreno que havia comprado em prestações e falou: “Neury esse terreno é para garantir o seu estudo como médico.” Eu era muito pequeno, mas, quando meu pai me disse aquilo, eu senti muito mais uma responsabilidade e um desejo de não precisar daquele terreno. Meu pai também era muito atento, eu via que quando ele atendia os clientes como alfaiate – geralmente pessoas mais cultas -, ele sempre perguntava quais livros eram bons para comprar para uma criança. Pouco tempo depois, ele chegava com um livro para dar de presente para mim e para as minhas irmãs. Isso me deu a base para eu me dedicar bastante aos estudos e à profissão.
Seu contato com prevenção do suicídio surgiu logo no início da vida profissional?
Assim que formei e terminei a residência em Psiquiatria, o Hospital das Clínicas da Unicamp tinha acabado de ser implantado. Eu organizei o serviço de atendimento a pacientes internados que precisavam de um psiquiatra. Comecei a atender muitos casos de tentativa de suicídio que chegavam ao pronto-socorro e eram internados no hospital. Quando eu ia conversar com essas pessoas, elas me diziam algo que me chocava: “Eu não quero morrer, eu não queria morrer, foi um momento de desespero”. Aquilo mexeu muito comigo e eu comecei a estudar, a pesquisar o que havia sobre prevenção do suicídio no Brasil. E havia pouca coisa.
Essa experiência influenciou o desenvolvimento de pesquisas?
Quando eu voltei para o Brasil [após dois anos de pós-doutorado em Londres], decidi que era a hora de desenvolver uma linha de pesquisa em prevenção do suicídio. Fizemos uma grande campanha no hospital para convencer médicos, enfermeiros, assistentes sociais a encaminharem os casos de tentativa de suicídio – atendidos no pronto-socorro – para um ambulatório que eu criei, em 1991, chamado Ambulatório de Crise.
Éramos um grupo multiprofissional: estudávamos, atendíamos as pessoas e fazíamos reuniões clínicas de supervisão. Essa experiência muito prática permitiu que eu escrevesse o primeiro artigo em prevenção de suicídio, dizendo: “Nós montamos um esquema no Hospital de Clínicas da Unicamp, em que uma pessoa, depois que ela é atendida, ela não é mandada embora para casa”. E com um detalhe: eu também pedia para os médicos anotarem o telefone da pessoa atendida. Se ela não viesse no ambulatório, a gente ligava para ela.
Então, fiz a minha primeira pesquisa com o que a gente chama de registro de caso e busca ativa. Sabemos, pelos estudos populacionais, que uma pessoa que tenta o suicídio e não morre, a chance de ela tentar de novo e morrer é maior do que a de outras pessoas que nunca fizeram isso.
Depois de 15 anos trabalhando com prevenção do suicídio, o que incentivou o senhor a escrever o seu primeiro livro sobre o tema?
Um dia, eu estava no Nordeste, terminei de dar uma palestra para um grande número de pessoas. Chegou uma senhorinha na minha frente, veio caminhando devagar, sorrindo, me deu um abraço, agradeceu pela palestra. Ela olhou bem no fundo dos meus olhos e disse: “Professor, o senhor já escreveu um livro sobre todas essas coisas que o senhor fala?” Eu olhei para ela e falei: “Não, eu ainda não escrevi um livro, tenho trabalhado muito nessa área, mas não escrevi um livro”. Ela olhou bem para mim, uma senhora do povo, muito simples, e disse: “Pois está na hora”.
O jeito dela se aproximar, o jeito dela me olhar nos olhos, me impressionou. Porque, claro, alguém já tinha me dito isso antes, né? Estando no meio universitário, rodeado de colegas, provavelmente uma ou outra pessoa já havia me falado: “Vamos escrever um livro” ou “Escreve um livro”. Mas aquilo não me pegou. E, parece mentira, um livro [Crise Suicida] que faz tanto sucesso, eu escrevi em dois meses.
O senhor foi um dos responsáveis pela criação da ABEPS há dez anos. Como foi esse início?
As primeiras palestras que eu dei sobre prevenção de suicídio foram em encontros sobre violência: violência urbana, homicídio, latrocínio, acidentes automobilísticos. E aí, alguém lembrava que o suicídio também era uma morte violenta e me chamava. Fui conhecendo muita gente interessada no assunto e formando uma pequena rede de contatos. Uma dessas pessoas foi o orientador do meu doutorado, um amigo querido, o Roosevelt Cassorla, membro honorário da ABEPS. Outra pessoa foi o Carlos Felipe D’Oliveira, que até hoje está na diretoria da ABEPS, é um dos fundadores, e na época, trabalhava no Ministério da Saúde.
Foi de uma dessas reuniões – e de outras que se seguiram – que saiu uma portaria publicada pelo Ministério, chamada Estratégias Nacionais de Prevenção do Suicídio, em 2006. Fizemos um grande evento nacional para lançar as estratégias, um evento científico. Foi um encontro muito importante do qual participaram pessoas chave no país em prevenção de suicídio. Nesse contexto, também aparece o professor Humberto Corrêa, da UFMG, que tem muitas publicações sobre o tema. E ele começou a organizar, em Belo Horizonte, encontros científicos na área de prevenção de suicídio. Tanto que nós devemos reconhecer: a ABEPS nasceu em um desses encontros, em Belo Horizonte (MG).
Alguma história curiosa desses primeiros passos da ABEPS?
Eu fui o tesoureiro e o Humberto Corrêa o presidente da primeira diretoria e a gente tinha que abrir uma conta bancária. Conseguimos abrir no Bradesco, aqui de Campinas. Naquele tempo, não tinha como fazer assinatura eletrônica a distância. O Humberto pegou um avião em Belo Horizonte, chegou na agência do banco em Campinas onde estávamos eu e o gerente do banco esperando. Ele assinou, pegou um táxi, voltou para Viracopos. Ele conseguiu, em uma manhã, sair de Belo Horizonte, chegar aqui e assinar. Porque tinha que ter a assinatura do presidente e mais um.
O que vocês pretendiam ao criarem a ABEPS?
A ABEPS nasceu com duas grandes aspirações: desenvolver a prevenção e desenvolver estudos. Eu tenho a impressão de que a ABEPS já caminhou muito no campo da prevenção, da discussão, no campo da orientação, do que é legal ser feito, do que é contraindicado ser feito. Mas, inicialmente, a ABEPS também tinha essa tendência a poder discutir, planejar, e, quem sabe, um dia, ajudar na execução ou no financiamento de estudos científicos. Essa vertente ainda precisa ser desenvolvida e é muito difícil. É uma luta muito grande, mas eu acho que a ABEPS está muito bem. A gente tem conseguido, com muito esforço, fazer o congresso a cada dois anos. Então, só temos que comemorar.
Em seus projetos futuros, podemos esperar a publicação de um novo livro?
Eu estou escrevendo um livro que tem um título provisório, um título bem geral. Tem uma pasta ali no meu computador chamada “Crises Humanas”. Às vezes, eu penso que se o título fosse mais chamativo e mercadológico, seria “Segredos de um Psiquiatra”. É um livro de crônicas e, ao mesmo tempo, alguns capítulos não são crônicas – eles também são para ensinar, é uma mistura. É um trabalho que eu estou fazendo devagar e salvando.
As suas lembranças da infância e do ambiente familiar inspiram essa trajetória?
Não há dúvida. Tanto que, no livro que eu estou escrevendo atualmente, tem um capítulo que eu falo “Os Meus Primeiros Mestres Entrevistadores”. E eu me lembro do olhar da minha avó numa roda na sala, todo mundo falando sobre tudo, num determinado momento ela olhava para mim e falava baixinho: “E você, Neury, como vai você?”
Pronto. Aquele momento era meu, eu me sentia importante, eu ainda de calça curta, naquele momento eu tinha a minha avó toda para mim. Essa influência já vem desde a infância, as bases do que a gente é, com quem a gente aprende, as primeiras grandes figuras de identificação vêm da infância. Então, eu faço uma homenagem a eles também.
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Assessoria de Comunicação da ABEPS