O entrevistado da edição de outubro do Somos ABEPS dispensa apresentações para quem acompanha a trajetória da Associação e estuda políticas públicas de prevenção do suicídio. A presença ativa e constante de Carlos Felipe D’Oliveira (@carlosfelipedoliveira), 75 anos, foi fundamental para a sustentabilidade e fortalecimento da Associação ao longo desses dez anos de existência. Atual vice-presidente, já esteve na presidência por duas gestões e participou de todas as diretorias.
Carioca “da gema”, nascido em Copacabana, Rio de Janeiro (RJ), passou os primeiros anos da infância no Pará, para onde o pai, servidor público, foi transferido. “Eu nasci no Rio e fui tomar banho de igarapé em Belém até os cinco anos de idade”, recorda.
O contato com a região amazônica no início da vida certamente contribuiu para que, mais tarde, se tornasse um porta-voz da urgência em enfrentar as altas taxas de suicídio entre indígenas, especialmente jovens. Carlos é médico pediatra e servidor público aposentado do Ministério da Saúde, onde também trabalhou assessorando a alta gestão em temas ligados à prevenção do suicídio.
Vamos saber o que está sendo preparado para o VI Congresso Brasileiro de Prevenção do Suicídio, em 2026, em Petrópolis (RJ) local de residência do nosso entrevistado que também espera mostrar aos participantes o melhor que a cidade imperial pode oferecer.
Ao compartilhar trajetórias, experiências e projetos desenvolvidos em diversas regiões do país, a ABEPS busca fortalecer vínculos internos e reconhecer o papel de cada associado na promoção do cuidado, da pesquisa e da prevenção do suicídio.
Confira a íntegra da entrevista!
Você comentou que tem vários médicos na família, inclusive um bisavô médico que foi pioneiro na implantação de um centro de radiologia no Brasil. A Medicina era um sonho de infância seu?
Carlos – Não. Eu queria fazer Biologia, mais precisamente Zoologia. Mas eu também gostava muito de viajar e a minha mãe, sabendo disso, disse que eu deveria entrar para a Marinha. Eu vi que não daria certo, que eu não tinha o perfil e que teria que viajar mesmo às minhas custas. Então eu disse para ela: “Eu vou ser médico”.
Como surgiu sua atuação na prevenção do suicídio?
Eu tive contato com o tema quando estava terminando meu mestrado em saúde da criança, no Instituto Fernandes Figueira, da Fiocruz. Fazia estágio no ambulatório de epilepsias infantis e escrevia minha tese sobre hiperatividade e distúrbio de atenção. Durante os estudos, deparei com alguns efeitos colaterais de medicamentos utilizados também nesses casos e sua associação com o suicídio.
Naquele momento, há quase 30 anos, me interessei pelo tema, mas estava concluindo a tese e meu filho mais novo estava prestes a nascer. Eu disse: “Não posso ter outro foco agora”. Defendi a tese, meu filho nasceu e, em seguida, retomei o interesse pela suicidologia. Comecei a procurar conteúdo e quem estudava o tema.
De onde vieram as primeiras referências para os seus estudos?
No início, encontrei algumas referências no Brasil e nos Estados Unidos. Entrei para a Associação Americana de Suicidologia há quase 30 anos. Fui a congressos, vi como funcionavam, como trabalhavam. Pela primeira vez ouvi a palavra “sobrevivente”, compreendi seu significado, vi como existiam associações que participavam ativamente dos congressos. Muitas dessas iniciativas acabamos trazendo também para os congressos da ABEPS. Passei três anos em imersão na Associação Americana, observando como eles atuavam, seus centros de ajuda e de suporte.
Na época, como era falar sobre prevenção do suicídio e estudar essa temática no Brasil?
Uma vez, nos anos 1990, fui chamado para participar de um programa para jovens, na TV Educativa, e falar sobre suicídio. Pouco antes do programa começar, me disseram que havia chegado uma ordem da chefia suspendendo minha participação, por medo de que falar sobre o tema na TV pudesse provocar outros suicídios. Isso é um mito.
Há mais de 100 anos, Émile Durkheim, pai da sociologia, escreveu sobre o suicídio e deixou claro: não é falar sobre o suicídio que leva alguém a se matar, mas sim a forma como se fala.
Hoje o que temos de novo são as redes digitais, com velocidade e propagação de imagens que têm efeitos diversos. O desafio é como nos protegemos e como protegemos os jovens diante da enxurrada de informações. A fronteira já não é física, é digital.
Na sua opinião, o que o Poder Público precisa fazer urgentemente para reduzir as taxas de suicídio no país?
Cumprir a lei. O Brasil já tem legislação que institui uma política de prevenção, um comitê gestor nacional e uma coordenação. Alguns estados avançaram, outros não. O mesmo acontece em municípios. É preciso uma coordenação nacional e nós, enquanto Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio, estamos disponíveis para ajudar.
O Brasil assinou um acordo internacional para reduzir as taxas de suicídio até 2030 e precisa avançar na construção de políticas efetivas. Já estamos em 2025, e 2030 está logo ali. Não estamos fazendo o que deveríamos. Sou sempre favorável ao cumprimento de compromissos oficiais, fruto de debates técnicos. O que podemos fazer nos próximos cinco anos não é o mesmo que podíamos em 2013, quando assinamos o acordo, mas ainda dá tempo — desde que aceleremos as ações.
Como surgiu sua relação com a ABEPS?
Antes da fundação da ABEPS, já havia participado, em 2006, com um grupo de profissionais, da elaboração das diretrizes da Estratégia Nacional de Prevenção do Suicídio. Depois, em um simpósio em Minas Gerais, surgiu a proposta de criar a Associação, e participo desde o início.
Outro dia, pensei sobre minha contribuição para a ABEPS e concluí que fui alguém que deu sustentabilidade à instituição e sempre refleti “E o futuro, como será? Quem serão as novas gerações que vão assumir?” Sempre tive essa preocupação com a organização da Associação.
Qual a sua avaliação sobre a trajetória de 10 anos da ABEPS?
Fico bastante satisfeito ao ver que nos tornamos uma referência nacional e internacional. Em eventos fora do Brasil, como no Congresso da IASP, já somos uma delegação brasileira reconhecida. E o prestígio é uma ferramenta: permite conquistar coisas, construir legados e desenvolver projetos para a prevenção do suicídio.
Esse prestígio contribui para trazer ao Brasil eventos importantes como o Congresso da IASP?
Acredito que sim. Devemos ampliar nossa participação em eventos internacionais e compartilhar experiências. Já estamos concorrendo e recebemos a informação de que estamos na lista para possivelmente sediar o Congresso da Associação Internacional para Prevenção do Suicídio (IASP), em 2027 ou 2029. Estamos enviando informações e aguardamos uma resposta positiva.
Você traz cicatrizes internas de um período em que esteve preso pela ditadura. Como essa experiência ajudou a entender o sofrimento do outro e a fortalecer sua atuação na prevenção do suicídio?
O processo de prisão e tortura é muito complexo e doloroso de compreender, mesmo para quem viveu. Muitas vezes me pergunto por que atuo há tantos anos na prevenção do suicídio, já que nunca me considerei uma pessoa persistente. As pessoas dizem: “Você é persistente, está há tantos anos nesse tema”. Então também me perguntei: por quê?
Eu não tive experiências pessoais próximas de suicídio, mas eu vivi sofrimento, dor e medo. A experiência da prisão me toca até hoje, especialmente porque trouxe perdas de memória. Talvez isso me permita falar mais sobre sofrimento e compreender melhor a dor do outro.
Além disso, gosto de investigar. Sou um médico detetive: gosto de ler, procurar respostas, escrever. Isso me anima e me ajuda a pensar em como podemos chegar aos jovens, de formas diversas, para apoiá-los.
Você é o presidente do VI Congresso Brasileiro de Prevenção do Suicídio, que será realizado de 5 a 8 de agosto de 2026, em Petrópolis (RJ). O que os participantes podem esperar desse que é o maior evento nacional sobre o tema?
Estou bastante entusiasmado e trabalhando muito na organização. O fato de o congresso ser em uma faculdade de Medicina, tratando de um tema que normalmente não está presente na graduação, é uma barreira que vamos quebrar. Queremos trazer para dentro da Universidade um debate que sabemos ser necessário, já que esses espaços também enfrentam casos de suicídio e tentativas. Além disso, quero mostrar Petrópolis, que considero uma cidade interessante também do ponto de vista turístico.
O que pode adiantar sobre o que está sendo preparado?
Queremos oferecer atividades culturais e criar espaços de encontro e integração. Já estamos em conversa com instituições e grupos culturais de Petrópolis. Também temos uma lista de convidados internacionais de referência. Outro objetivo é dar visibilidade às experiências e iniciativas de prevenção que estão acontecendo em várias partes do Brasil, para que sejam conhecidas e fortalecidas.
Podemos esperar o lançamento de um segundo livro da ABEPS?
Sim, estou com essa missão. Estamos conversando com a editora e esperamos lançar o segundo livro da ABEPS no próximo Congresso, trazendo muito conteúdo de qualidade.
– Acompanhe Carlos Felipe no Instagram: @carlosfelipedoliveira
Assessoria de Comunicação da ABEPS