Setembro é aquele mês no qual quem trabalha com prevenção do suicídio precisa se dividir em dois para dar conta de tanta demanda. Nossa entrevistada do Somos ABEPS sabe muito bem disso e, no caso dela, “se multiplicar” até faria sentido: nem todos sabem, mas Karen Scavacini (@karensca) tem uma irmã gêmea.
“Minha mãe só descobriu que eram dois bebês na hora do nascimento. Eu já nasci dando um susto nela, né? Ela esperava uma e vieram duas!”, conta, ao lembrar do nascimento junto com a irmã Kátia. “A gente é completamente diferente na vida profissional. Minha irmã é dona de uma pousada!”, diz.
A psicóloga Karen Scavacini, 48 anos, é natural de São Paulo (SP). Associada da ABEPS desde o início da Associação, tem uma trajetória profissional voltada à promoção da saúde mental e à prevenção do suicídio. É fundadora do Instituto Vita Alere – pioneiro e referência na área – e representante do Brasil na Associação Internacional para Prevenção do Suicídio (IASP).
Nesta entrevista, Karen revela que um golpe fez os planos profissionais mudarem de rota e uma viagem a um país distante trouxe novas perspectivas para sua atuação na Psicologia. Ela também faz uma reflexão crítica sobre as abordagens do Setembro Amarelo.
Ao compartilhar trajetórias, experiências e projetos desenvolvidos em diversas regiões do país, a ABEPS busca fortalecer vínculos internos e reconhecer o papel de cada associado na promoção do cuidado, da pesquisa e da prevenção do suicídio.
Confira a íntegra da entrevista!
ABEPS – A Psicologia não era o seu sonho de infância. Conta pra gente como foi o início da sua vida profissional…
Karen – Eu comecei a estudar técnico em eletrônica porque queria aprender a mexer naquelas mesas de som. Os cursos para isso só existiam no exterior, e financeiramente eu não tinha a menor condição. Minha família sempre foi muito simples, tanto que comecei a trabalhar muito cedo para poder ter meu dinheiro.
Mas aí eu descobri que, na verdade, queria entender como a música agia no ser humano, como ela influenciava as emoções. Foi então que descobri e me matriculei no curso de Musicoterapia. Só que o dono da faculdade deu um golpe, a instituição fechou no meio do curso e eu tive que me transferir para Psicologia. Acabei virando psicóloga por acaso.
Na época foi uma decisão difícil?
Ter saído da Musicoterapia foi muito doloroso para mim, porque significou abandonar um sonho. Depois, já na faculdade de Psicologia, eu tinha certeza que iria trabalhar na área de recursos humanos. Quando somos jovens, achamos que temos certeza de tudo, né? Que nada vai mudar, que vamos ter sempre aquela mesma vontade… Eu trabalhava o dia inteiro em uma multinacional e, à noite, ia para a faculdade.
Como surgiu a sua relação com o trabalho de prevenção do suicídio?
Também foi por acaso. Quando percebi que não era a área de recursos humanos que me interessava, fui trabalhar na área clínica e hospitalar. Fiquei cerca de dez anos entre clínica e hospital até que meu marido foi convidado para trabalhar na Suécia, em 2008.
Minha filha tinha 06 meses nos mudamos para Estocolmo e quando ela entrou na escolinha, com um ano e meio mais ou menos, descobri um mestrado em saúde pública no Instituto Karolinska, com especialidade em promoção da saúde mental e prevenção do suicídio. Fui fazer o mestrado pensando até em trabalhar com casos de depressão, porque pensei: “Ah, suicídio nem acontece muito”.
Passei no mestrado, e éramos um grupo de no máximo dez alunos, sendo eu a única brasileira. Quando comecei a estudar, me apaixonei pelo tema e sempre pensava: como assim existe tanto suicídio no mundo? Como nunca tive uma aula sobre isso na faculdade? Que dor é essa que leva as pessoas a tirarem a própria vida?
Não foi uma época fácil, porque morar no exterior com uma criança pequena, sem rede de apoio, é muito complicado. Então, sinceramente, estudar suicídio para mim era a parte leve do dia, a parte tranquila. Era onde eu me sentia útil, voltava a pensar e a me conectar com a profissão.
Que reflexões esse mestrado trouxe para a sua atuação profissional?
Eu me instigava muito a pensar no que poderia fazer com tudo aquilo que estava estudando. Certo dia, um professor fez uma pergunta que me deixou pensativa: “Quantas pessoas vocês conhecem que já se mataram?”
Minha primeira reação foi: “Não, não conheço ninguém.” Mas aquilo ficou na minha cabeça durante uma semana, matutando, até que lembrei que conhecia pelo menos umas cinco pessoas que haviam se matado. Isso me deu a sensação de que o suicídio estava muito mais perto da gente do que costumávamos falar.
Naquela época quais planos você fez para quando voltasse ao Brasil?
Eu também vivia o desafio de pensar se continuaríamos morando na Suécia por muitos anos. Foi lá que comecei a sonhar que, caso voltasse ao Brasil — o que ainda não era uma certeza —, abriria um instituto para trabalhar com prevenção e posvenção. Posvenção foi um termo que aprendi na Suécia. No Brasil, naquela época, eu nunca tinha ouvido falar sobre isso.
Chegou um momento em que meu marido precisou voltar ao Brasil e eu disse a ele que ficaria na Suécia com nossa filha até concluir o mestrado, pois não queria abrir mão desse estudo. Fiquei lá ainda alguns meses sozinha com ela, que tinha por volta de três anos. Quando retornei ao Brasil, fundei o Instituto Vita Alere, inaugurado em 2013.
Como surgiu a sua relação com a ABEPS?
Minha relação com a ABEPS começou em 2015, durante o Simpósio [Simpósio Latino-americano de Prevenção do Suicídio] em Belo Horizonte. Quando cheguei ao evento, a única pessoa com quem já havia tido contato era o Neury Botega, que inclusive me ajudou muito com materiais de estudo enquanto eu estava na Suécia.
No simpósio, eu conhecia pouca gente, mas cheguei dizendo: “Olha, eu quero ajudar. Como posso ajudar?” No fim, acabei entrando como colaboradora na Diretoria da ABEPS [o ato de criação da ABEPS foi feito durante o evento]. A partir daí, começamos a trabalhar, a ter encontros, reuniões, e a ABEPS foi tomando forma.
O que mais preocupa nesse cenário hoje, considerando o contexto do Setembro Amarelo?
Muita gente falando bobeira sem saber direito. As pessoas que passaram por isso, que tentaram suicídio, as que perderam pessoas, ficam sobrecarregadas nesse mês. Tem muita informação errada, muita gente querendo aparecer.
Eu acho que ficou um mês muito delicado de se navegar. Ficou um mês muito comercial e a gente precisa de mais pesquisa para entender o efeito iatrogênico, porque quando a gente conversa com as pessoas que têm a experiência vivida, elas dizem que passar por setembro é muito sofrido.
Por mim, o Setembro Amarelo devia acabar. Eu acho que a gente deveria pensar em, no máximo, uma semana e olhe lá, porque quanto mais tempo, é mais oportunidade de as pessoas falarem bobeira. Precisamos também ter um trabalho mais focado com uma incidência pública maior e, além disso, a gente precisa de um Plano [Nacional de Prevenção do Suicídio] que realmente funcione.
A Associação Internacional para Prevenção do Suicídio (IASP) propõe para o dia 10 de setembro – Dia Mundial de Prevenção do Suicídio – o tema “Mudando a narrativa sobre prevenção do suicídio”. Como podemos mudar essa narrativa?
Mudar a narrativa é mudar a forma de falar sobre o suicídio. E isso envolve muitas coisas. É mudar o jeito como as pessoas se relacionam com o tema suicídio. Desde você ter uma comunicação mais responsável, uma comunicação baseada em evidências e, para isso a gente precisa aumentar as pesquisas sobre o tema. Ter conversas honestas sobre suicídio, ou seja, sem tabu, sem papas na língua, mas não quer dizer que a gente possa falar qualquer coisa. Quer dizer que a gente não deixa que o tabu nos impeça de falar. E sim, a gente vai falar com responsabilidade e muito cuidado.
Mudar a narrativa quer dizer ajudar a ter incidência pública para que as políticas realmente funcionem. Por exemplo: que as faculdades tenham que dar cursos de prevenção do suicídio ou pelo menos uma aula de prevenção do suicídio nos cursos de saúde. E que as pessoas entendam também que o suicídio é um problema de todos. Então, se a gente não fala sobre isso, como que as pessoas podem prevenir? Como que as pessoas podem identificar ou saber o que fazer? Então, mudar a narrativa vai além do mudar a forma de fala, vai para mudar a forma como as pessoas entendem a complexidade com relação ao suicídio.
No que os seus trabalhos anteriores (monitora de acampamento, garçonete, atendente de telemarketing, entre outros) ajudaram na sua vida profissional hoje?
Cada um desses trabalhos me ensinou muitas coisas: como lidar com pessoas, como conversar e como escutar. Também acho que me deu muita resiliência nesses anos todos. Trabalhar com prevenção do suicídio não é fácil. Eu trabalho com isso há mais de 15 anos, todos os dias da minha vida. Tem dias que são mais difíceis? Claro que tem. Eu sou humana, tem dia que eu não tô bem… Tem dia que uma história pega mais se ela tem mais contato com a minha.
Então, terapia é fundamental, autoconhecimento é fundamental, autocuidado também. Dá para fazer isso sempre? Não, né? Quem me dera. E esses trabalhos todos me ajudaram a chegar até aqui, a poder pagar a minha faculdade. Eu trabalhava para poder pagar a faculdade também e para fazer os cursos que eu queria. Então, com certeza, meus trabalhos me ajudaram em muita coisa!
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